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Profilaxia pós-exposição - A vacina do dia seguinte.
É um tratamento de urgência para pessoas que de repente fiquem expostas ao contágio pelo vírus da SIDA. A PPENO - o nome médico - é uma profilaxia eficiente, mas que em Portugal não tem regras definidas e poucos sabem que existem.
Reportagem de Isabel Freire publicada na revista Única do jornal Expresso de 14/04/2006
André (nome fictício), 40 anos, é seropositivo. Há seis meses teve uma relação sexual protegida, mas o preservativo deslizou sem ele se aperceber. Perturbado, tentou acalmar a parceira - seronegativa - e convencê-la da existência de uma solução. Incrédula e desesperada, a companheira lavava-se compulsivamente. «Isso não adianta, temos de ir ao hospital», repetiu-lhe André. A companheira nunca tinha ouvido falar de tal coisa: Profilaxia Pós-Exposição Não Ocupacional (PPENO) ao VIH. E é natural: à excepção de um artigo sobre esta terapêutica no boletim da Abraço, a PPENO é um assunto quase fantasma nas páginas da Internet e não existe um único parágrafo a mencioná-la nas brochuras da extinta Comissão Nacional de Luta Contra a Sida (CNLCS).
André acabou por vencer o cepticismo da companheira com um telefonema para a linha da Abraço. A resposta acendeu-lhe a esperança: «Sim, a Profilaxia existe mesmo» e pode evitar que alguém se torne seropositivo, após uma situação de eventual exposição ao risco de contágio. Só que o prazo limite para a iniciar é curto: até 72 horas após relações sexuais desprotegidas, com ruptura ou deslizamento de preservativo, ou em caso de partilha de material injectável (caso do consumo de droga). A medicação é semelhante à terapêutica anti-retroviral que se prescreve a uma pessoa infectada pelo VIH e toma-se durante 28 dias. Apesar dos efeitos secundários possíveis - perturbações de funcionamento do fígado ou rins, náuseas, vómitos, sensação estranha na cabeça, dificuldade em dormir, anemia, alergias ou hepatite tóxica, que pode ser mortal -, tem um grau de eficácia estimado pela comunidade científica internacional entre os 80 e os 90%, como explica António Mota Miranda, director do Serviço de Infecciologia do Hospital de São João, no Porto, onde a PPENO é prescrita desde 2000.
O EXPRESSO seguiu o exemplo de André e ligou para as linhas informativas do VIH-Sida, simulando uma situação de rompimento de preservativo: «Há alguma coisa que se possa fazer?» A resposta foi afirmativa, mas cautelosa, realçando que a PPENO está sujeita à avaliação de cada caso, por cada médico. A excepção à regra surgiu numa das duas chamadas efectuadas para a linha da ex-CNLCS, actual Coordenação Nacional da Infecção VIH/SIDA: «Não há nada a fazer, a não ser esperar seis semanas e realizar o teste».
Afinal, há ou não há Profilaxia em Portugal? A resposta clínica pratica-se há pelo menos cinco anos, mas os cidadãos desconhecem-na, bem como alguns médicos, e as normas de actuação não existem. Em 2000, foi referido na Imprensa que estava prestes a ser concluído um protocolo com recomendações, que seria o princípio de uniformização da PPENO no nosso país. O documento nunca foi conhecido. E, segundo Henrique Barros, coordenador nacional da infecção VIH/SIDA, o futuro da Profilaxia está ainda em estudo e discussão por uma equipa que inclui profissionais de saúde e seropositivos.
Ao EXPRESSO, a Direcção-Geral de Saúde disse desconhecer quaisquer números sobre a prescrição da PPENO desde 1998 (data apontada como estreia da terapêutica no nosso país). Há uma certeza, porém, entre as fontes contactadas: a procura foi e continua a ser escassa. Dados da Abraço dão-nos uma ideia da dimensão do problema: num total de 563 chamadas para a respectiva linha telefónica, em 2005, expondo situações problemáticas, 28 diziam respeito a acidentes com preservativo. Kamal Mansinho, director do Serviço de Doenças Infecciosas do Egas Moniz, em Lisboa, estima que neste hospital possam ter sido «aconselhadas a tomar PPENO cerca de 20 pessoas, nos últimos sete anos», sobretudo casos de relações sexuais em que um dos parceiros é seropositivo.
No caso de André, este decidiu dirigir-se ao Amadora-Sintra, hospital da área de residência da companheira: «Na triagem, o enfermeiro chamou uma médica, que nos disse que não tinham tempo para este tipo de problemas, que, por ser penetração vaginal, o risco era pequeno e os medicamentos que dispunham já eram insuficientes para o próprio pessoal hospitalar». De facto, médicos, enfermeiros, auxiliares, bombeiros e outros profissionais de saúde fazem desde há dez anos a Profilaxia, em situações de acidente laboral. O princípio clínico é semelhante, mas variam o nome (PPE Ocupacional), o consenso à roda da prescrição e as situações de exposição ao risco (por exemplo, picada com agulha contaminada ou contacto com as mucosas de líquidos contendo sangue).
João Farto e Abreu, director do Serviço de Infecciologia do Amadora-Sintra, desconhece o caso relatado por André e estranha a declaração de falta de medicamentos («temos stocks suficientes», diz). Segundo o médico, no Serviço de Infecciologia existe uma política de PPE para os profissionais, mas não há protocolo que oriente a equipa para a prescrição da Profilaxia Não Ocupacional, facto que «não implica que os doentes fiquem sem orientação», assegura. O director do Serviço de Infecciologia do Hospital de São João não tem conhecimento de hospitais com Serviços de Infecciologia que se recusem a prescrever a Profilaxia Não Ocupacional: «Seria inaceitável». Mas a descrição de André mostra que a prática não é bem assim: «A médica avisou-nos que ali não podiam fazer nada e mandou-nos para o centro de saúde (quando a PPENO é prescrita única e exclusivamente em hospitais com Serviços de Infecciologia ou Medicina Interna e os anti-retrovirais não se adquirem em farmácias). O incidente com o preservativo deu-se numa sexta-feira, pelas 17h. Fiquei com a ideia de que a médica nem conhecia a PPENO».
«A maior parte dos países industrializados têm indicações terapêuticas publicadas para Profilaxia Ocupacional e Não Ocupacional», informa Kamal Mansinho. António Mota Miranda defende que a divulgação desta Profilaxia deve ser integrada nos dados informativos globais sobre a infecção e apresentada como o último recurso. O médico lembra ainda que há vários estudos que demonstram que a PPENO não contribui para o aumento de comportamentos desprotegidos: «Além de receitar os fármacos, vamos acompanhar a pessoa e tentar garantir que não há nova exposição, num trabalho de equipa entre vários profissionais».
Tal como não foi realizado até hoje um plano de informação e formação sobre a PPENO, também não há regulamentação e concertação entre organismos de saúde e estabelecimentos prisionais, Polícia Judiciária e Instituto de Medicina Legal (IML), por exemplo.
Mesmo em casos de agressão sexual, a PPENO pode nem chegar a ser mencionada se a vítima se dirigir ao hospital e deparar com um médico pouco informado ou sensível ao risco. Aliás, nem existe qualquer deliberação formal do Estado que diga «recomenda-se em caso de violação». «É inconcebível, pois são situações obviamente traumatizantes do ponto de vista físico, aumentando o risco de contágio», argumenta a médica Maria José Campos.
André e a companheira acabaram por ir ter com o especialista que o acompanha no Hospital Curry Cabral, em Lisboa. Depois de uma conversa longa e abrangente sobre hepatites, gravidez, efeitos secundários da medicação e plano de acompanhamento da Profilaxia para três meses, saíram das urgências com a PPENO na mão.
«Considerando a eficácia da Profilaxia Pós-Exposição em estudos animais, acidentes profissionais e prevenção da transmissão de mãe para filho, em termos de qualidade assistencial e custo, a PPENO só tem benefícios», diz António Mota Miranda. Por norma, quando a fonte de contágio é portadora do VIH, os médicos não têm dúvidas. A controvérsia instala-se quando não se sabe se o parceiro está infectado. «A Profilaxia não pode ser vista como pílula do dia seguinte» e substituir a prevenção primária, alerta o infecciologista. «Às vezes, as pessoas pensam que qualquer relação sexual tem indicação para PPENO e não é assim. A avaliação tem de ser individualizada», explicita Kamal Mansinho, alegando ser necessário pesar dois riscos: o de a pessoa se infectar e o da toxicidade dos medicamentos.
«Mesmo que o risco seja de 0,3%, como é que eu vou saber se aquela relação não é a dos 0,3%? Não sei eu, nem ninguém. Sabemos que a relação anal é a prática mais arriscada, mas logo a seguir é a vaginal», argumenta a médica Maria José Campos. Para Henrique Barros, a PPENO deve ser receitada em «situações extraordinariamente limite». Em primeiro lugar, explica, seria necessário ter uma ideia global sobre o que leva as pessoas a julgarem-se expostas, para não se fazer subprofilaxia nem sobreprofilaxia, realizando inquéritos de natureza epidemiológica e sociológica. Além disso, o coordenador nacional da Infecção VIH/SIDA defende a necessidade de orientações clínicas gerais e vê «benefícios numa acção continuada junto dos profissionais (médicos, enfermeiros e farmacêuticos), pois não pode haver uns a dizerem ‘isto é óptimo’ e outros a dizerem ‘isto é péssimo’».
«Estamos a lidar com uma coisa muito séria: a utilização de medicamentos para circunstâncias em que podem não ser necessários. Também podem criar-se climas, com ou sem interesses subjacentes, que tendam a promover prescrições desnecessárias. Se toda a gente usar o preservativo quando deve - ou seja, sempre -, a probabilidade de ocorrência de problemas é muito pequena», acrescentou Henrique Barros. Para a médica Maria José Campos, o raciocínio está enviesado: «As contas têm sido mal feitas. Se 28 dias de Profilaxia são caros (entre 1100 e 1400 euros, incluindo consultas, métodos complementares de diagnóstico e anti-retrovirais), 10, 15 ou 20 anos de tratamento e seguimento de um doente são muito mais».
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