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A revelação https://gp-pt.net/forum/viewtopic.php?f=35&t=832 |
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Autor: | DANTE [ 16 Mar 2007 ] |
Assunto da Mensagem: | A revelação |
Ele acordou assustado, pensava ter ouvido o estampido seco de um tiro. Seu corpo doía, seus olhos não conseguiam fixar um ponto, tudo girava numa vertigem nauseante. Tentou controlar a respiração enquanto ainda estava deitado sob a marquise. Devagar, começou a levantar-se. Equilibrava-se apoiado numa parede. Não sabia onde estava, sua mente era um embaralhado de imagens desconexas. Ergueu-se. À sua frente, a fachada envidraçada de um banco devolvia-lhe seu reflexo. Aproximou-se. Sua face era marcada por sulcos e desenhos de rugas profundas, seus cabelos se torciam num emaranhado grisalho e amarelo. Não se reconheceu. Como por impulso, iniciou um caminhar lento, pausado, sem saber aonde iria. Arrastava consigo os farrapos que o cobriam. Um cheiro de suor e álcool exalava da sua pele invadindo suas narinas, um incômodo que ele desprezava. A noite abafada fazia seu rosto brilhar banhado pela própria transpiração. Suas pernas o guiavam, fraquejavam vez ou outra, mas conheciam os perigos das horas de treva, não podiam parar. Entrou por uma longa avenida e seguiu em frente. Tentava lembrar-se... Mas do quê? Flashes explodiam em sua memória: uma criança, uma mulher, alegria... Tiros! Seus ouvidos sempre ecoavam tiros que o roubavam dos sonhos. Os pés ardiam, mas não podia parar. Apenas sabia que não podia parar. Continuou marchando, cambaleante, pela avenida. Às vezes, curvava-se, sentindo sua barriga contrair como que atravessada pela lâmina gelada de uma faca. Tinha fome. Queria lembrar... Mas para quê? Uma brisa morna soprou em seu rosto e acariciou seus cabelos como se fossem as mãos generosas de um Deus. Mas ele não recordava o que era fé. Seu mundo era concreto demais para permitir alguma crença. Seu Deus era o Nada. Lixo, disso ele não esquecera. Do lixo extraía seu alimento. O lixo era sua sobrevivência. Remexeu os sacos pretos recostados à beira de um poste de frente para um botequim que lhe parecia familiar. Mastigou as migalhas e os pedaços do que era comestível. Sede, tinha sede... Um carro começava a encostar o meio-fio. Movido pelo instinto, correu para ajudar o motorista na manobra. Sinalizava, humilde, esperando que o motor silenciasse. O vulto de um jovem saltou do veículo estendendo-lhe uma nota de dinheiro. Ele abaixa a cabeça, submisso, sua forma de agradecer. Vai ao balcão do bar, pede uma aguardente e bebe num só gole. Volta a sentir o sangue circular nos membros entorpecidos e um suspiro de vida emerge do seu peito. Recomeça a jornada pela avenida comprida. Passo a passo, percorre seu descaminho. A madrugada já ia alta. Ele força a visão, tenta focar o horizonte no negrume do asfalto. Inútil. Deve continuar pisando adiante. Figuras humanas andavam ao seu redor, ele os via, mas não era visto. Não compreendia. Quem era o fantasma? Ele ou a turba indiferente? Gotas frias o atingem do céu, a chuva desaba de repente. O calor se desprende da pista, a água escorre como cachoeira pelas reentrâncias do seu corpo e se mistura à lama dos seus trapos. Um alívio percorre seus sentidos, era o bálsamo que faltava. Ajoelha sucumbindo ao cansaço. Sente uma ânsia de choro, mas esquecera o que eram lágrimas, seu mundo era seco demais para consentir compaixão. Rasteja até um terreno baldio e vai abrigar-se numa grande manilha abandonada ali. Estende-se exausto. Precisava lembrar... Mas por quê? Fecha os olhos e os ecos de tiros assombram seus ouvidos. Lembra que quer viver e que amanhã irá alcançar o fim da avenida. Lá encontraria as respostas, ele sabia... ** Dedico esse texto despretensioso a um mendigo que amanheceu morto numa das esquinas do Rio de Janeiro. Seu nome era Mauro e eu o conheci. Espero que tenha encontrado a paz. DANTE |
Autor: | Radar [ 16 Mar 2007 ] |
Assunto da Mensagem: | |
Confrade Dante este para mim será um dos seus melhores escritos de sempre ![]() ![]() ![]() Demonstrando sim os terriveis acontecimentos do dia a dia dessa grande metropole que é o Rio de Janeiro ![]() ![]() ![]() Muito forte este escrito,mas enfim é, e sera sempre uma dura realidade presente no dia a dia dessa maravilhosa cidade ![]() ![]() ![]() Com estes infurtunios salpicando a sua intrinseca beleza ![]() ![]() ![]() Um muito mas muito Obrigado pelo seu depoimento ![]() ![]() ![]() Espero que com eles nos dê a conhecer melhor seu pais, e nomeadamente sua maravilhosa cidade ![]() ![]() ![]() Um forte abraço meu amigo Radar ![]() ![]() ![]() |
Autor: | DANTE [ 05 Mai 2007 ] |
Assunto da Mensagem: | |
Agradeço as palavras e a leitura, amigo Radar. |
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