Plutão
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Astúrias
Durante algum tempo, aqui há uns anitos atrás, as minhas férias de Verão, que duravam invariavelmente 15 dias, eram feitas de carro. Muitas vezes com destino incerto, outras vezes com o percurso minimamente preparado, Foi este o caso, em que decidi percorrer a costa norte de Espanha, mas que, em duas semanas, teria de ser feito em diversas etapas, divididas ao longo de dois anos. Lá enchi o porta-bagagens com coisas úteis e outras inúteis, mas indispensavelmente uma tenda de campismo, um saco-cama e um colchão fininho, uma mochila com roupa para várias estações do ano, máquina fotográfica, caneta, bloco de notas e um mapa – saliente-se que, na altura, não havia GPS. E fiz-me ao caminho, apenas com dois terços de depósito, porque do lado de lá da fronteira o combustível era mais barato. Quatro dias depois, ultrapassado meio Portugal e uma breve passagem pela Galiza que já conhecia de outros périplos, entro na verdejante província das Astúrias, cujo maior chamariz dá pelo nome de Picos da Europa, assim designados porque quando os navios dos descobridores de outros mundos sulcavam aquelas águas, sabiam que a pátria já não estava muito distante quando avistavam, do alto da gávea, a silhueta dos picos mais altos das montanhas.
Uma das portas de entrada no parque nacional é Cangas de Onís, cujo ex-líbris é uma monumental ponte gótica, com uma cruz de generosas dimensões pendurada e a baloiçar sobre as águas do rio Sella. A partir desta antiga capital do reino, segui as indicações para Covadonga, onde estacionei e fiz a exploração a pé. Diante de mim, a meia-encosta, vejo uma gruta que contém uma pequena capela que, para os espanhóis em geral e os asturianos em particular, tem grande significado. Foi aqui que se iniciou a reconquista cristã da Península Ibérica, toda ela ocupada pelos invasores mouros no século VIII, excepto este pequeno reino escondido atrás das montanhas. Após a vitória na batalha de Covadonga, percebe-se hoje a razão de as Astúrias seram consideradas como o berço da nação espanhola. Mas após este momento histórico-religioso, senti o apelo cada vez mais forte da montanha. A estrada é empinada e cheia de curvas e contracurvas, mas é quase lá no alto que surge a recompensa: os lagos Enol e Ercina, verdadeiros postais-ilustrados da região. No Inverno, os lagos congelam, mas agora, em pleno Verão, as águas são azuis e as margens repletas de vegetação. A paragem seginte é em Arenas de Cabrales, que quase deu para cheirar à distância devido ao forte odor do afamado queijo Cabrales, cujo processo de fabrico obedece a tradições que perduram na memória dos tempos e que é passada de geração em geração. Vale a pena parar numa das bodegas e pedir umas tapas deste queijo que cruza muito bem com uma jarra do tinto local.
Mais à frente, chego a Poncebos, uma terreola minúscula mas que, apecebi-me logo, é o spot ideal para os amantes das caminhadas e do contacto com a Natureza. O trilho mais concorrido desenrola-se ao longo da garganta do rio Cares, o silêncio apenas era cortado pelo correria das águas afuniladas, mas a determinada altura aquilo começou a subir e a descer, a descer e a subir. Cruzo-me com alguém que vinha em sentido contrário que me tentou reconfortar: “hombre, são só mais 7 quilómetros até ao fim!”. Porreiro, já tinha feito 5 quilómetros, mas ainda havia que juntar mais doze para regressar. E foi aí que dei meia-volta e dei por encerrada a caminhada. Cheguei ao carro com bolhas nos pés e a suar por todos os lados. Após um merecido repouso, volto a olhar para o mapa e percebo que a montanha mais alta dá pelo nome de Naranjo de Bulnes e que, no seu nicho, há uma aldeia com o mesmo nome. Ok, vamos lá até Bulnes. Pois... a questão é que não há estrada para lá. Mas do mal o menos: existe um funicular que atravessa a montanha e que retirou a aldeia do completo isolamento que viveu duante várias décadas. Quando desço da carruagem, sinto que estou num local inóspito, encaixado entre duas vertentes montanhosas e com algumas casas de pedra acantiladas nas encostas. Tentei encetar um diálogo com um dos aldeãos que vinha de enxada na mão, mas tive de desistir devido ao cerrado sotaque asturiano. Fiquei-me pelas vistas.
O destino seguinte é Potes, a localidade que serve de base de exploração dos Picos da Europa, e que se mostra fervilhante de turistas. Estava eu entretido com uma caña numa esplanada a olhar o mapa quando sou interpelado por um grupo que estava na mesa ao lado: “You go straight this road till the end, it’s wonderfull!”. Meti-me no carro e fiz-me à estrada. Belo caminho, sem dúvida, até que ao fim de uns quantos quilómetros, sou obrigado a parar... porque já não havia estrada. Acabava ali. Olho então em frente e vejo uma imensa parede granítica quase lisa. Óbvio, a estrada não tinha possibilidade de continuar porque aquele “monstro” rochoso era inultrapassável. Fuente Dé é um fim de rota. Mas como há um teleférico que ascende às alturas, lá comprei um bilhete e entrei naquela caranguejola metálica. O topo está à altitude de 1834 metros, mas não consegui desfrutar devida e calmamente o cenário. A cabina rangia por todos os lados parecendo que se poderia desintegrar a qualquer momento, as tangentes à parede de rocha nua eram constantes, só rezava para chegar são e salvo. Por fim, a paragem lá em cima. Só eu sei a alegria que me invadiu quando finquei os pés em terra firme. E só então olhei em redor. Lá de cima, o miradouro fez-me sentir como se tivesse o mundo aos meus pés. Afasto-me das montanhas e conduzo para norte, em direcção ao litoral. Chego a Ribadesella, inundada pelo sol que batia na suave ondulação do Mar Cantábrico. Abanco numa esplanada, peço uma caneca de cidra e uma fabada asturiana. Uma hora depois, com o estômago completamente saciado, acompanho o café solo com um cigarro que me soube divinamente. Olho o sol a esvair-se pelos contornos da baía e miro novamente o mapa. Tempo de voltar para Portugal, mas já com planos na cabeça: no próximo Verão, venho directamente para Oviedo e depois faço a Cantábria e o País Basco. Assim será.
_________________ Love will tear us apart, again...
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