Plutão Escreveu:
Tempo de voltar para Portugal, mas já com planos na cabeça: no próximo Verão, venho directamente para Oviedo e depois faço a Cantábria e o País Basco. Assim será.
E assim foi. Efectivamente, no Verão seguinte, fui direitinho para Oviedo, onde pouco me detive mas que me pareceu uma cidade engraçada, tendo em mente percorrer o que me faltava da costa norte espanhola. Ainda passei por Gijón, uma cidade portuária que não me encantou e, depois sim, fiz-me a caminho por estradas bem mais interessantes, tendo o Golfo da Biscaia como pano de horizonte. Fui percorrendo povoações piscatórias de enfiada, parando aqui e ali para comer umas
tapas e sorver umas
cañas, mas a primeira mira estava apontada para Santillana del Mar. Quando lá cheguei, um misto de sensações: é uma localidade extremamente interessante, bonita e bem preservada, mas muito, demasiada, concorrida por turistas. Foi uma dificuldade enorme encontrar um lugar para estacionar o carro e comecei a ficar saturado de andar aos encontrões para visitar algum lugar. Hora e meia depois, decidi partir e foi bastante contrariado que verifiquei que tinha uma multa de estacionamento no pára-brisas. Dobrei-a meticulosamente e atirei-a para o caixote do lixo mais próximo. E saí de lá sem saber ao certo porque raio a localidade tem aquele nome – é um pouco para o interior, mas o mar, dali, não se vislumbra.
Finalmente, Santander. Cidade pacata, iluminada pelo sol enquanto lá estive e fácil de percorrer. Mas o melhor, mesmo, é deixar o carro parado e apanhar um daqueles barcos que percorre toda a baía homónima. É um passeio muito agradável e só assim se percebe a ordenação e a complexidade dos contornos de Santander. Mas estava vista. O que me orientava, com uma sensação de curiosidade e algum respeito, era a província vizinha do País Basco.
Voltei à costa, voltei a ter o mar como companhia, voltei a passar por aldeias piscatórias, até vislumbrar o que me pareciam as ruínas de um castelo que recortava o céu. Parei. Castro Urdilales vale a pena para parar e ficar um pouco. O castelo faz companhia ao areal da praia, mas em vez de estender a toalha que tinha no porta-bagagens, optei por sentar-me numa das muitas esplanas que contornam a zona balnear e apaparicar-me com uma salada de polvo e uns camarões acompanhados por cidra. Não sou grande adepto desta bebida de maçã fermentada, mas é sempre um grande entretenimento ser-se servido pelos empregados, que elevam a jarra bem acima da cabeça e, sem olhar, despejam-na num copo que seguram com a outra mão abaixo da cintura. E a bebida cai direitinha no recipiente, quase sem entornar uma gota. Belo final de tarde, mas comecei a pensar que seria melhor chegar a Bilbau antes do anoitecer.
Como nota de rodapé, refero que, naquela altura, a região basca não estava propriamente pacificada. Havia um grande clima de tensão, a ETA estava bem viva e as manifestações pró e contra eram assíduas. Nada que me demovesse, mas admito que cheguei lá com uma certa apreensão. Para refreear um pouco o estado de espírito e por curiosidade, parei numa localidade com um nome familiar: Portugalete. Que coisa horrível… Mais feio que aquilo só o Jabba the Hutt, da Guerra das Estrelas, e mesmo assim… Como é óbvio, zarpei dali o mais rápido que pude. E eis-me finalmente em Bilbau. Foi só tempo de comer qualquer coisa e embrenhar-me pela cidade. A primeira praça que apanhei encontrava-se apinhada de gente, com cartazes ininteligíveis e palavras de ordem igualmente imperceptíveis… que pontaria, uma manifestação! Mas eu queria passar e com mil e um cuidados fui condizindo o carro devagarinho, avançando centímetro a centímetro, não fosse atropelar ninguém… E foi com agradável surpresa que me apercebi que, depois de verem a nacionalidade da matrícula, as gentes se desdobravam em gestos de simpatia, sorrisos na cara e polegares ao alto. É bom ser-se português no País Basco!
O que dizer de Bilbau? Recorro a Fernando Pessoa – primeiro estranha-se, depois entranha-se. É assim: não é cativante à primeira vista, mas nota-se que, nos últimos tempos, é uma cidade de vanguarda, de modernismo, de ousadia e que adoptou o
design como segunda pele. Acredito que o Guggenheim tenha servido como mola impulsionadora para reinventar Bilbau e, por isso, vi uma cidade vibrante e disposta a singrar o seu próprio destino. Convivi com a população que, ao saberem-me português, se desfaziam em simpatias. Um deles, já um pouco carcomido pelo tempo e com a típica boina na cabeça, disse-me com um brilho nos olhos: “vocês têm aquilo que nós nunca conseguimos – a independência”. Após três dias, apercebi-me de três coisas incontornáveis : os
pintxos (uma espécie de tapas locais), o estádio San Mamés (o Athletic é a única equipa de La Liga que só joga com futebolistas bascos) e, claro, o museu Guggenheim. Este foi a última paragem antes de partir. Certo, é o maior ex-líbris bilbaíno, é a razão de demanda da maior parte dos turistas, mas, sinceramente, não me encheu as medidas. Arquitectonicamente, é fabuloso, mas estava à espera de mais no interior. Ou, então, sou eu que não percebo nada de arte contemporânea.
Ao final do terceiro dia, segui viagem com destino a Guernica. Cheguei de noite e foi uma verdadeira epopeia encontrar um local de alojamento. Corri ruas atrás de ruas, mas pelo menos serviu para me aperceber de uma cidade que recuperou das cinzas e se remodelou, apesar da mágoa na memória. Finalmente, encontrei um hotel esconso que deu para dormir meia dúzia de horas.
No dia seguinte, acordei animado. O sol jorrava pelas persianas e foi com o pensamento em alta que entrei no carro e rumei para a costa, para a zona de veraneio: Bermeo, Lekeitio, Mutriku e Zumaia, verdadeiras mecas para os adeptos do surf e do windsurf. Fui parando e vendo, fui parando e petiscando, fui parando e bebendo. Muito bom, mas não me atrevi a pôr o pé na naquela água gelada.
E eis-me em San Sebastián, ou Donostia à moda local. À primeira impressão… óptimo, fantástico! A cidade assentou arraiais num dos mais belos recantos de Espanha. Imagine-se: uma baía perfeita pontuada por dois montes em cada lado e com uma ilha no meio, um rio que desagua ali ao lado, e o casario disposto ordenadamente. No topo de um dos montes, havia um parque de campismo com vistas soberbas e foi ali, alegremente, que montei a minha tenda. San Sabastián foi “minha” durante uma semana, e descobri uma cidade bonita e encantatória, mas com dois “senãos”: o clima chuvoso quase permanente e, como dizer, uma certa decadência em relação ao que já foi. Percebe-se que tem uma alma aristocrática e elegante, razão porque, décadas atrás, era o local de veraneio privilegiado da corte real, mas fiquei com a sensação que, daí para cá, a cidade não evoluiu, não investiu como Bilbau. Bela e charmosa, sem dúvida, mas um pouco parada no tempo.
Não me restavam muitos dias, mas ainda não completara o objectivo a que me propunha – ir até à fronteira. No caminho para lá, quis passar por Pasaia-Donibane, sobre a qual tinha lido algumas coisas, mas a surpresa superou o esperado. É uma aldeia que fica encaixada no final de uma entrada de mar ao jeito de um fiorde, suspensa numa arriba que quase caía a pique sobre as águas, ao ponto de haver apenas uma estrada estreitinha que apenas permitia que passasse um carro de cada vez. Nunca, como ali, senti tanto o espírito basco. Pelos grafitis, pelas bandeiras com as cruzes verdes, brancas e rubras, pelos escritos nas paredes, pelos cartazes pendurados na rua a reclamar a libertação dos etarras presos. Ali, estava bem vivo o peso do orgulho basco. Mas também havia um sem-número de restaurantes, porta sim, porta não, com peixe e marisco fresquíssimos a preços bastante em conta. Entrei num deles para almoçar e todos os presentes olharam para mim, intrigados. Perante o meu castelhano aparentemente pouco exímio, interrogaram-me sobre a minha proveniência, e a resposta abriu-lhes um sorriso bem-disposto. Disseram-me palavras em basco que obviamente não percebi, mas também não era preciso, porque os olhares de admiração e simpatia diziam tudo. À saída, perguntei quanto era, por gestos. E não me deixaram pagar. Agradeci, e saí.
Retomei o caminho e comecei a atentar nas placas que diziam “Francia”, e fiz mira para o último bastião basco – Hondarribia. Uma terra bonita, com o
casco medieval e o
parador impecáveis, e que se visita de um fôlego só. Dali, já se viam terras francesas, mas ainda sob o domínio basco, pois o território é transfronteiriço. E pensei… porque não ir um pouco mais adiante? Fui. Atravessei a fronteira na ponte sobre o rio Bidasoa, parei na colorida Saint-Jean-de-Luz para sorver um gelado e segui para Biarritz, a antiga estância de charme mas que ainda vive na saudade dos tempos de glória. Estacionei, dei umas voltas a pé pela marginal, sentei-me num banco de madeira, tirei um cigarro e fiquei ali pensativo, entre baforadas de fumo.
Era tempo de voltar. A Portugal. Mas com a cabeça já cheia de planos. Outro Verão virá.