A ALICE DO AVIANÇO E O SR. RAMOS

O Liceu (hoje Escola Secundária) Camões, além do grande prestígio pedagógico e de excelência de ensino de que merecidamente gozava, de ter tido no seu corpo discente nomes como o do escritor Vergílio Ferreira, do artista plástico Fernando Fernandes ou do filósofo e ensaísta Alberto Ferreira, apresentava uma característica muito especial. Um dos lados do edifício dava para a Rua Almirante Barroso, onde havia uma pensão de meninas em que pontificavam a Alice do Avianço (um nome que era todo um programa), e também a mercearia do Sr. Ramos.

Como o nome indicava, a Alice do Avianço era conhecida pela sua altíssima rotatividade, e por ser arrasadoramente omnívora em termos de clientela. Brancos, pretos, amarelos ou azuis, altos, baixos ou anões, gordos ou magros, com ou sem pernas e braços, inteligentes e burraldos, doutorados ou abrunhos, ricos, remediados ou pobres, a Alice todos atendia e aviava num abrir e fechar de olhos, mediante uma tarifa que hoje poderíamos designar de no cost. A Alice era loira, magra e para o feiinho, mas lá que os atraía, isso atraía, não sei que dote especial oculto possuía. E era mais afreguesada que as outras todas juntas.

Uma das distracções favoritas dos alunos do Camões na década de 70 era ir ver as meninas postadas à porta da pensão, e fazer a contabilidade das subidas e descidas da Alice do Avianço. Até bolsa de apostas havia. Um dia, um rapaz da minha turma do 4º ano, o Castanheira, boa alma e que tinha tanto de brutinho com pouco de inteligente, avançou para a Alice do Avianço. E não foi sozinho. Levou com ele, em excursão familiar, o pai e o tio, que tinham uma oficina em Loures. Vou poupar os confrades à escabrosa descrição que o Castanheira depois nos fez, quer da sessão de pinada, quer das condições de higiene da pensão e da rapidez profissional com que tudo se passou. Direi apenas que a Alice fez um preço especial de família, e que atendeu os três ao mesmo tempo...

Na mesma Rua Almirante Barroso onde pontificavam a pensão da Alice do Avianço e suas amigas, também existia a mercearia do Sr. Ramos. O Sr. Ramos era um respeitável pequeno comerciante, e para o provar tinha na montra os retratos do Eusébio, da Virgem Maria e do Prof. Salazar. E não se cansava de comentar com fregueses, vizinhos e amigos o "escândalo" e a "pouca-vergonha" que era para a rua, a existência nela de uma pensão de "mulheres perdidas", que ficavam postadas à porta a "mercadejar-se descaradamente", o dia todo.

O pormenor divertido é que o conservador e moralista Sr. Ramos tinha telhados de vidro. E como. Era uma bicha louca, que se pelava por assediar os jovens marçanos que empregava, ou por apalpar algum incauto aluno do Camões que fosse lá jogar matraquilhos e não soubesse do que a casa gastava. Aliás, havia alguns barrascos sem pinga de auto-respeito que iam para lá jogar matrecos à borla, em troca de deixarem o guloso Sr. Ramos acariciar-lhes as partes baixas por alguns segundos. Às vezes, o Sr. Ramos ficava tão satisfeito, que além dos jogos à borla, até lhes oferecia gasosas.

Um dia, calhou a Alice do Avianço estar a conversar com um potencial cliente mesmo ao pé da porta da mercearia do Sr. Ramos, umas quantas portas acima da da pensão. O Sr. Ramos, furibundo, mais vermelho do que um pimentão, veio lá de dentro do estabelecimento com uma vassoura nas mãos para enxotar a Maria Madalena do trottoir das imediações do seu digno comércio. Mas a Alice, que tinha uma capacidade de resposta mais fulminante do que um Ranger de Lamego, fê-lo estacar na sua marcha indignada com uma frase arrasadora: «É lá, ó panasca, vê lá se queres que te enfie essa vassoura pelo cu acima como tu gostas!". Gargalhada geral de todos quantos se encontravam nas imediações, e retirada estratégica do Sr. Ramos para o fundo da mercearia. Até choveram palmas do pátio de recreio do Camões.

A Alice do Avianço andou anos a bater a Rua Almirante Barroso e as suas imediações. A pensão acabou por fechar e as outras meninas partiram para novas paragens, mas a Alice por ali ficou, como se fosse parte integrante da ecologia do bairro. A última vez que a vi, já na década de 80, penava pela Avenida Defensores de Chaves, como uma assombração teimosa de um tempo da prostituição de rua de Lisboa que tinha acabado sem ela saber. Não sei o que foi feito dela. O Sr. Ramos reformou-se, fechou a mercearia e morreu em casa poucos anos depois. Os prédios da mercearia e da pensão já não existem, foram demolidos e substituídos por outros, de escritórios cheios de gente ocupada.

O Liceu Camões ainda lá está, de pedra e cal. Sempre que passo na Rua Almirante Barroso, vejo-me, garoto, ingénuo e excitado, no muro da vedação de rede metálica do Camões que dá para a artéria, ao pé dos meus colegas de turma, na patética distracção de ver as meninas encostadas à porta da pensão, a Alice do Avianço no sobe-e-desce do ataque, e o Sr. Ramos de braços cruzados à porta da mercearia, a olhar para elas com ar indignado. E até me lembro do brutinho do Castanheira a contar a sua aventura a três em família com a Alice. Pode parecer ridículo, mas juro que às vezes quase que me comovo. Isto das recordações - até de recordações como estas - é uma coisa lixada.

Óh Eduardo, isto lá são horas de escrever tal estória, já eu estava para me entregar ao sono dos justos...

Pelo menos acabei de tomar conhecimento que foi no Liceu Camões que a tua aprendizagem sobre o mundo "trottoiriano" começou.
Acho que acabei de inventar uma nova palavra.

Belo relato sim senhor.

Mais um grande post caro Eduardo!

Não posso deixar de realçar um pormenor absolutamente delicioso:


Já nem me lembrava das famosas gasosas, parentes pobres dos 7up's e Sprites. Caramba, quanto tempo!

Marca BB, caro administrador...

Opá... parece que ontem recolhi antes de tempo e só hoje é que me deparei com esta prosa... fabuloso este relato memória da Lisboa de 70. Excelentes os pormenores da alcunha da menina Alice e o fabulástico episódio do iniciático ritual de emancipação do jovem Castanheira pelos machos da família. Já agora, sobre essa história das gasosas, ainda eram os famosos "pirolitos"?

Era o pirolito com o berlinde?


Fantastica cronica com a excelente qualidade com que o Edu nos vem habituando...

cum caneco!! também te lembras disso? era isso mesmo

Era o pirolito com berlinde, sim, caros confrades, que nesses anos 70 imediatamente pós-25 de Abril, já estava a caminho da "reforma" por causa da gasosa com carica "moderna", a tal da marca BB!

Ainda me lembro da garrafa mas ja com carica... tinha um "estragumento" para manter o berlinde perto do gargalo... ... de facto a partir de 77 acho que desapareceu...

Tambem me lembro das garrafas de Spur Cola... a coca cola portuguesa...

Nada disso safado. Era da CanadaDry.

Pois... o Sr. Ramos também vendia Canada Dry... e também a "oferecia" a alguns dos moços mais "prestáveis" de que falo no post... o mesmo para a Fanta laranja! Mercearias daquelas, com matraquilhos, proprietários gulosos de rapazinhos e meninas no cost a atacar ao pé, já não há. E tudo mesmo ali ao pé de um prestigiado estabelecimento de ensino da capital... Hoje, isto é pura e simplesmente inimaginável.

Exactamente Marsapio... os Pirolitos e a Canada Dry eram engarrafados na actual Unicer (ja fechou) em Sta Iria da Azoia ao lado da Covina... Lembro-me de passar por lá muito pequeno e ver as pilhas de grades de pirolitos



Edu, acho que hoje na sociedade "politicamente correcta" em que vivemos não seria possível uma mistura de situações como a que descreves... não faltariam programas de televisão e políticos de meia-tigela a querem tirar proveitos próprios da situação... basta ver a quantidade de reportagens que foram feitas quando o Dr Jorge Sampaio era presidente pelo facto de viver paredes-meias com a Rua Rodrigo Fonseca onde e um dos maiores spots actuais de GPs

Correctíssimo. E como o Sampaio já não é presidente... acabaram-se as reportagens!

E alguem se lembra dakela lata verde Sands que era tipo Panaché?

Ai eu em miuda adorava akilo!

Nicole, acho que o nome era: Green Sands!!! Até tinha anúncio na televisão... mas isso já foi nos saudosos 80s com a chegada da televisão in colors...